
Clássicos do Cinema - 1960
Marcello Rubini é um jornalista de escândalos que aspira tornar-se um escritor "sério", respeitado. Vivendo uma vida boêmia, ele frequenta a alta roda da sociedade italiana da década de 60, desde os meios aristocráticos até aos cinematográficos. As suas aventuras e desventuras servirão de veículo a uma profunda reflexão sobre a sua vida e a realidade que ele, no fundo, tenta esconder de si mesmo. Considerada por muitos como uma das grandes obras cinematográficas de todos os tempos, "La Dolce Vita" (A Doce Vida), apresenta-se, antes de mais nada, como uma metáfora da vida, mais precisamente da vida na sociedade moderna como a conhecemos até ao presente. Esta obra é considerada o ponto de transição do cinema de Fellini do Neo-Realismo (que dominou o cinema italiano do Pós-Guerra até o início da década de 60) para o Simbolismo. A abertura do filme nos remete à uma paisagem de paredes em ruínas, onde um helicópetro transporta pendurada uma enorme estátua do Cristo Redentor, seguido por outro no qual vão os jornalistas que fazem a cobertura do evento. Decadência e Modernidade, lado a lado. Daí em diante, a cena aérea percorre boa parte de Roma desde os subúrbios efervescentes de novas construções, sobrevoando as coberturas luxuosas da alta burguesia da Cidade Eterna, onde mulheres seminuas nas piscinas acenam ao helicóptero, com a tour terminando na eslendorosa Praça de São Pedro, no Vaticano. Simbólica e esteticamente, estas são as cenas mais "amenas" do filme, embora encubram sob o manto simbólico todo o significado real do filme e da expressão "La Dolce Vita" que consubstanciava, originalmemte, a decadência e a imoralidade da high society. Afinal, como dito por Salmanazar desta cena: "pedra voa sobre pedra e pousa em pedra com nome de pedra" (São Pedro, para os mais lentos de raciocínio). De cara, vemos um despedir-se de um passado que se não era plenamente belo, engendrou junto com a tradição judaica e o legado helenista, as raízes do humanismo. Este passado é relegado ao que já foi o pulsante centro nervoso, por assim dizer, do Ocidente e hoje é uma instituição ossificada, desmesuradamente ajustada e apegada ao mundo decadente que supostamente deveria condenar. Hoje, a expressão "La Dolce Vita" transmite ou melhor tenta transmitir a idéia de "joie de vivre", de prazer intenso, de que o mundo pode ser um eterno reino de prazer sensorial (no Brasil, é nome até de pizzaria e condomínio de luxo). Tal significado praticamente não engana ninguém, nem mesmo os escribas de plantão que tentam impingir esta Doce Vida de araque, pois só se desilude quem se iludiu, traindo a si mesmo. A personagem de Marcello, brilhantemente interpretada por Marcello Mastroianni, muito bem secundado pela competentíssima Anouk Aimée e pela langorosa e sensual Anita Ekberg, é o típico indivíduo recluso de uma sociedade que fornece constantemente novos e diferentes aliciantes que servem, acima de tudo, para esquecer ou remediar a triste existência que se leva neste mundo. Alienado - ou esforçando-se por alienar-se - dos dramas humanos que vive, Marcello é o representante de uma larga faixa da sociedade que foge de si mesma tentando viver tudo de um só golpe. Toda uma vida num rompante, sem pensar em muito mais. Da mesma forma que a religião é (era?) o ópio do povo e tenta-se nesta encontrar a justificação para os erros da nossa existência, a sociedade laica dos tempos que correm (e corriam), à falta da religião, escuda-se noutras formas de alimentar o ego humano e fazê-lo esquecer, constantemente, que, antes de mais nada, ele é apenas... humano, independentemente do que isso seja! Frequentemente, nossa humanidade é usada como uma desculpa para nossas faltas, um subterfúgio que nos permite fugir à responsabilidade do que somos, do que nos tornamos. Essa foi, inclusive, a grande batalha do existencialismo, particularmente em Sartre e Merleau-Ponty; mostrar ao Homem que ele é o grande responsável por si mesmo, pelo que ele é e pelo que será. Não existe uma essência pré-determinada. Nesse ponto, o cinema de Fellini apresenta parentesco com o existencialismo. Em "La Dolce Vita", Fellini faz uso da fotografia e de uma concepção cenográfica especial para criar um ambiente de sonho, belo, como oposição à triste e deprimente realidade que as personagens vão vivendo. Tal dualidade é usada de forma exígua para fazer passar a intensa mensagem de toda a obra contribuindo, e muito, para abrilhantar ainda mais uma história, já de si, magnífica. A realização é, como é costumeiro em Fellini, brilhante. O desempenho dos atores é extraordinário - Mastroinanni era um monstro sagrado, um dos maiores atores de todos os tempos - assim como todos os demais pormenores técnicos do filme, desde a cenografria, passando pela fotografia e acabando no figurino. Tudo se mistura de uma forma perfeita em que o resultado final é, para usar novamente uma expressão muito cara ao escritor Marques Rebelo,"ao fim e ao cabo", superior às partes. Resta referir, a título de curiosidade, que este filme possui várias cenas inesquecíveis tal é o seu uso até aos dias de hoje como fonte de inspiração não só a outros filmes como igualmente em termos publicitários por exemplo. Um outro fato interessante é que o tão difundido, em nossos dias, termo "paparazzi" deriva deste filme, mais especificamente da personagem Paparazzo (Walter Santesso), um fotógrafo a serviço de Marcello que se dedica a tirar fotografias do jet-set da década de 60. Concluindo, "La Dolce Vita" é um dos mais belos e extraordinários filmes alguma vez feitos. Com uma atualidade surpreendente e abordando uma temática que a todos diz respeito, esta obra é aconselhável a toda e qualquer pessoa que goste, nem que só um pouco, de cinema. Justamente premiado com a "Palma de Ouro" no Festival de Cannes. Claro, a crítica social é tão forte neste fime, que apesar de nomeado a 4 Oscares, "La Dolce Vita" só venceu na categoria Melhor Figuro (guarda-roupa, como dizem em Portugual, e, nos países de língua inglesa, wardrobe). A Academia não teria coragem naquele período de premiar de forma ostensiva um filme que arrasa com os fundamentos tacitamente aceitos e mantidos pelo Establishment de todos os países, pricipalmente no país campeão da manutenção do status quo, da sociedade vazia que mede as coisas pelo seu valor financeiro! Algumas palavras finais provavelmente não serão muito bem aceitas pelos amantes de Fellini e sua obra, principalmente após tantos elogios. Entretanto, o diretor tinha suas limitações intelectuais e culturais e, basicamente a vida toda, trabalhou e retrabalhou uma mesma idéia, um mesmo conceito filosófico, praticamente o clichê do século XX: a vida é triste e não corresponde absolutamente aos nossos desejos e à concepção que dela fazemos inicialmente e ao longo da torrente da vida vamos constatando esta triste verdade. Nada disso invalida o valor da sua obra, pois, simultaneamente, o cineasta transcendia a si mesmo e à sua simples concepção, provavelmente derivada do catolicismo tão fortemente impregnado na cultura italiana, criando uma das obras (em termos de carreira, de filmes realizados) mais valiosas do cinema, e uma obra-prima inegável, uma das maiores da chamada Sétima Arte, justamente porque, antes de mais nada, ao contrário de tantos diretores que pululam à nossa volta em cada esquina e na Meca hollywoodiana, Fellini era um Artista com A maiúsculo!
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